terça-feira, agosto 31, 2010

Aqui, acolá e além dos olhos

Vida cristã não é construir, da melhor forma possível, o meu castelo de espiritualidade. É trilhar um longo caminho, “aqui, acolá e além dos olhos”, seguindo o modelo de Cristo e orientado pelo Espírito.


Quem disse que o caminho é longo?
Jesus chama os discípulos, sem estabelecer prazos imediatos. “Sigam-me”; “Eu vos farei pescadores de homens” (Mt 4.18-22). Vida curta é para quem não vive a vida com Cristo (Mt 7.24-27 e 10.39). Em seu diálogo com Nicodemos, Jesus chamou o início de “novo nascimento”, o que pressupõe que a conversão é só o começo.
Já os autores do Novo Testamento viam a vida cristã, não como uma tarefa ocasional ou uma lista de tarefas, mas como um novo jeito de viver:
    - Paulo diz que “aquele que começou a boa obra em vocês, vai completá-la até o dia de Cristo Jesus” (Fp 1.6). Diz também que a vida cristã é uma corrida em direção a um alvo: conhecer a Cristo (Fp 3.12-16). O tema central da sua carta aos Gálatas é que somos transformados pelo Espírito, não pela lei, vivemos por Ele, não pelas regras.
   - Pedro projeta essa caminhada como “passos virtuosos” (2 Pe 1.5-9). Isto é, uma virtude alcança outra. O Espírito nos molda a cada passo.
  - João é mais simples e direto: “quem tem o Filho tem a vida, quem não tem o Filho de Deus não tem a vida” (1 Jo 5.11)

Se o caminho é longo, então temos que nos preparar para trilhá-lo. Aqui talvez resida nossa fraqueza mais aguda. Estamos sendo engolidos pelo imediatismo. Aprendemos a correr cem metros, mas não uma maratona. Aprendemos a ser assim. Nossos professores também estão confusos. Já não enfrentamos a vida com olhos fixos no horizonte, mas tão somente nos sapatos que calçamos.

O que perdemos com isso?
- Desistimos facilmente, e aos poucos vamos deixando de acreditar no caminho.
- O Cristianismo se torna uma religião que não se encaixa em nosso modo de vida. Com isso, ou o abandonamos (chamando-o de ultrapassado ou lento demais) ou procuramos uma outra versão de Cristianismo, mais soft, mais imediata, sem grandes pretensões, sem interferir significativamente em minha própria caminhada.
- Não experimentamos a graça de Deus na prática, não temos paciência para viver em comunidade, porque não aprofundamos a comunhão com a Trindade, não nos envolvemos integralmente com Deus; não aceitamos o desafio da plena unidade com Cristo (João 17.23).
- Não participamos da missão de redimir o mundo. Somos meros espectadores que até  lamentam a injustiça, mas não se veem compelidos a testemunhar a justiça de Deus. O Sermão do Monte não é para nós (Mt 5.11).

Para seguir o caminho é preciso...
Levar a sério a proposta de formação/transformação espiritual em Cristo: transformação de caráter (lúcida e persistente), “... até que Cristo seja formado em vocês” (Gl 4.19).
Vale a pena memorizar a reflexão de Dallas Willard, em seu livro A Grande (C)Omissão, página 77,78 (Editora Mundo Cristão):
“A formação espiritual em Cristo não é apenas um processo inconsciente em que os resultados podem ser observados enquanto Aquele que opera permanece oculto. Experimentamos, de fato, suas operações. Podemos buscá-las, esperá-las e ser gratos por elas. Estamos conscientemente envolvidos com ele nos detalhes de nossa existência e de nossa transformação espiritual”. (...)
Devemos parar de usar o fato de não podermos merecer graça (quer para justificação, quer para santificação) como desculpa para não nos envolvermos energicamente na busca por receber graça. Uma vez que fomos encontrados por Deus, passamos a buscar uma vida cada vez mais plena nele. Graça é o oposto de mérito, e não de esforço. A verdade da formação espiritual é que não seremos transformados “à semelhança dele” apenas por mais informações, por infusões, inspirações ou ministrações. Apesar de todos esses elementos ocuparem um lugar importante, nunca serão suficientes, e a confiança depositada exclusivamente neles explica porque, hoje em dia, tantos cristãos não conseguem ir muito além de certo nível de decência”.
"Buscar primeiro o reino de Deus e sua justiça" (Mt 6.33) é um convite de Jesus para uma caminhada em direção ao "sol da justiça", que nos desafia ao envolvimento santo com o mundo à exemplo de Jesus, nos coloca em submissão a Rei e nos enche da ousadia vinda do Espírito. Que assim seja!

terça-feira, agosto 24, 2010

A absurda decisão de não amar o cônjuge

A decisão de amar é acompanhada pelo risco de não amar. Nem o compromisso público do casamento extingue tal risco. Amamos quando nos dispomos a dedicar tempo, serviço e coração ao outro. Decidimos não amar quando nosso cônjuge deixa de ser o real objeto do nosso amor e se torna, em nossa fantasia, qualquer outra pessoa -- exceto ele mesmo.

Desvios sexuais, como a pornografia e o adultério, são, na prática, nossa absurda decisão de não amar o cônjuge. Na pornografia, idealizamos um corpo perfeito e não conseguimos dedicar tempo, serviço e coração para amar o corpo imperfeito do nosso cônjuge. Cada ato pornográfico é, no fundo, a decisão de não amar quem um dia decidimos amar. E quanto mais constante e repetitiva essa prática se torna, mais nos afastamos do nosso (verdadeiro) cônjuge. Se não houver cura, chegará o dia em que decidiremos amar definitivamente a fantasia da perfeição sem amor a despeito da realidade da imperfeição com amor.

Já no adultério, falsificamos a nós mesmos e duplicamos nosso cônjuge. Decidimos amar duas ou mais pessoas, não amando, na verdade, nenhuma. Já não há mais foco e dedicação ao amor. Não há uma pessoa inteira ao nosso lado, com sua história, sentimentos, defeitos e qualidades únicas. Há apenas opções de prazer. E já não somos nós mesmos, apenas consumidores de bem-estar. Cometer adultério também faz parte da absurda decisão de não amar o cônjuge. Quanto mais o praticamos, mais reduzimos a quase nada quem um dia decidimos amar.

Amar é uma ordem. Quando Jesus deu essa ordem aos discípulos (Jo 15.12), ele estava estabelecendo um alto padrão de relacionamento para toda a humanidade. Esse padrão é ainda mais relevante no relacionamento conjugal, que tem um grau de intimidade e compromisso muito mais elevado. No entanto, antes de ordenar que os discípulos amassem uns aos outros, Jesus disse que eles deveriam “permanecer no amor dele” (Jo 15.9). Permanecer é decidir diariamente continuar amando, e isso torna a vida maravilhosamente mais bela. À luz desse padrão, decidir não amar é verdadeiramente um absurdo.

Escrevi este artigo para a revista Ultimato nº 325 (julho-agosto de 2010). Leia todo o conteúdo da referida edição aqui.