Uma academia de minha cidade lançou uma campanha publicitária com o seguinte slogan “Viva a liberdade”. A foto que ilustra a frase é de um jovem pulando de um penhasco.
É assim que o conceito de “liberdade” é entendido hoje. É o direito de se fazer o que quiser, sem limites, sem dogmas, mas também sem muita noção do perigo das nossas escolhas para nós e para os outros. E não me venha com a ideia de que isso é argumento de covarde. Quando fazemos as escolhas que nosso coração deseja, elas são justificadas pelo valor da liberdade e da coragem, mas quando os efeitos do perigo destas escolhas nos batem à porta, fugimos ou buscamos um bode expiatório para enfrentá-los. Isso não é ter coragem.
A maldição do liberto sem pai consiste na ingenuidade de buscar uma tal liberdade à custa da orfandade. Experimentar a autonomia, mas esquecer-se de como é bom contar com os outros. Satisfazemos os desejos do nosso coração, mas não levamos a sério o fato de que ninguém caminha sozinho. Nossas escolhas sempre terão conseqüências na vida de outros, especialmente os que mais nos amam.
Enquanto acreditamos na ilusão de uma liberdade infinita, cambaleamos e sofremos com os efeitos de nossas escolhas impensadas: isolamento social, conflitos familiares, arrogância, imaturidade, indiferença com Deus. Nos sentimos perdidos e confusos, mesmo tendo experimentado a “liberdade”.
Para os que se entregam ao reino de Deus, a promessa é preciosa: nos tornamos seus filhos. Eis o verdadeiro caminho para a liberdade. Passamos a ver a vida como um grande presente de um pai amoroso, e a vivemos com abundância. No entanto, sabemos que o caminho é feito comunitariamente, que precisamos dos outros e que os outros precisam de nós. Sabemos que os erros existem, mas nos esforçamos para viver da maneira correta, por amor a Deus e ao ser humano. Não vivemos em um mundo habitado por pessoas estranhas onde cada um se basta em suas próprias decisões. Vivemos em uma família, onde toda escolha afeta o nosso próximo. Se assim pensamos, a paz será naturalmente uma construção coletiva, alegre e sincera. Daí as palavras de Cristo: “Felizes as pessoas que trabalham pela paz, pois Deus as tratará como seus filhos” (Mateus 5.9).
Viver a liberdade não é ter, a qualquer custo, o direito de pular de um penhasco. É sentir-se parte de uma família, e, em honra a isso, viver intensamente cada momento. É descobrir-se livre na proximidade com o outro. Afinal, mesmo quem tem a coragem de pular de um penhasco vai precisar de um paraquedas.
domingo, março 28, 2010
domingo, março 21, 2010
A maldição do horizonte sem sol
O mal do século não é a depressão, muito menos a solidão. Ambas são apenas sintomas de feridas mais profundas. A “cegueira seletiva” é a pior doença dos nossos tempos. O problema não é que não vemos, mas vemos o que não é importante, e deixamos de perceber o que realmente importa. É como visitar uma praia e enxergar apenas o vendedor de sucos. “Não viu a beleza das ondas? Não viu a brancura da areia da praia? Mas você esteve lá!”
A maldição do horizonte sem sol é o drama de se alegrar com a beleza do horizonte, mas não perceber o fulgor do sol. É ler o texto, mas não lembrar do seu título. É identificar o endereço, mas não se dar conta de que a placa da loja está na sua frente. É dedicar-se a decifrar os enigmas modernos, a dominar a tecnologia mais avançada, a criar as metodologias científicas mais inovadoras, mas não compreender as verdades mais profundas, que excedem os fenômenos meramente visíveis. Certa vez ouvi uma pessoa dizer que “a nossa pior tragédia é sermos bem sucedidos no que não importa”.
Nossa geração sofre com a cegueira seletiva porque não apenas seus olhos, mas também seu coração está doente. “São os olhos a lâmpada do corpo”. Se não há luz do lado de fora é porque o lado de dentro está cheio de escuridão. Se não enxergamos o que é mais importante é porque nossa alma está doente e precisa ser restaurada.
Talvez seja mais adequado chamar de epidemia, e não de doença. Isso porque a cura não vem simplesmente com um tratamento individual; é preciso haver uma mudança de olhar muito mais profunda e abrangente. Por estranho que pareça, a cura será eficaz quanto mais coletiva for.
A felicidade de quem se encontra no reino de Deus é enxergar o que realmente importa. É o que Jesus disse em seu famoso sermão: “Felizes as pessoas que têm coração puro, porque elas verão a Deus” (Mateus 5.8). Nossa visão torna-se límpida porque nosso coração também o é. A cura aconteceu antes, de maneira invisível, dentro de nós; e somente a percebemos quando começamos a enxergar o que não víamos antes. È precisamente isso – enxergar o que não víamos antes - que nos garante que a restauração já começou no profundo do nosso ser.
A promessa de Deus é nos curar de uma cegueira seletiva que nos deixa confusos e iludidos com as enganosas paisagens da vida. Somos submetidos a um escrutínio de nós mesmos, que revela nossa doença. Quando nos entregamos a Deus, passamos a ver o sol, ao mesmo tempo em que nos damos conta de que a beleza do horizonte que enxergávamos era apenas o começo.
Ver a Deus é reconhecer a presença pessoal de quem nos deu olhos exatamente para isso: para ver a beleza de sua divindade e para nos deleitar com as obras de suas mãos.
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sábado, março 13, 2010
A maldição da justiça individual
Aquele que está preso à sua própria justiça, é como alguém abandonado em uma ilha deserta: sem pão, sem ajuda, sem salvação. Os caminhos do egoísmo passam necessariamente pelas ilhas da justiça individual. Eis mais uma maldição do nosso tempo.
O homem contemporâneo vê a vida, as pessoas e os problemas a partir de um único princípio: “quem me deve que me pague!” Não há espaço para descontos ou perdão; muito menos para erros, imprevistos ou desatenção dos outros. Não há alegrias compartilhadas, apenas compensações. Não há compaixão, apenas favores. Não há confissões, apenas argumentos.
A maldição da justiça individual consiste em reduzir a uma única pessoa o que deveria ser para todos. O vislumbre do pôr-do-sol privatizado em uma tela pintada. É como comer todo o bolo no meio de outros famintos só porque foi você quem o preparou. “Eu fiz o bolo, logo é justo que o coma por inteiro e não o reparta com ninguém”.
No entanto, não se faz justiça sem misericórdia, porque ninguém resiste ao crivo da justiça individual, assim como ninguém sobrevive sozinho por muito tempo em uma ilha deserta. Quem decide viver assim se torna prisioneiro de si mesmo e da ilusão de uma organização da vida que, na verdade, é egoísta, insuficiente e incompleta. Uma solidão profunda atinge a vítima desta maldição, porque ela não vê amigos, apenas estranhos que ameaçam seus direitos.
A promessa do reino de Deus é colocar em ordem o fluxo da misericórdia. Quem se reconhece dentro deste reino, tem misericórdia dos outros e recebe misericórdia de Deus (Mt 5.7). A justiça da compaixão é o seu cetro. Fazer parte deste reino é ser libertado da escravidão da justiça individual e gozar da plenitude da justiça compartilhada, guiada por Deus e enriquecida pelos relacionamentos verdadeiros.
Misericórdia é “levar ajuda ao miserável” (Léxico Grego de Strong). Para que isso aconteça, precisamos admitir que somos ambos, o que leva a ajuda e o que recebe a misericórdia. E isso só será possível quando Deus nos curar da maldição da justiça individual.
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domingo, março 07, 2010
A maldição da carência
Somos capazes de escalar montanhas, percorrer matas e navegar mares à procura do que ainda não temos, de um anseio não realizado. E enquanto buscamos, somos transformados pelo desejo que nos move. De certa forma, ele nos define. À semelhança de Golum, personagem da série “O Senhor dos Anéis”, corremos o risco de perder a humanidade, caso o desejo egoísta pelo “precioso” nos domine.
Nossa geração vive a maldição da carência. Nela, os desejos aprisionam e definem nossos caminhos e nosso jeito de viver. Eles são fonte de lucro financeiro e movem a máquina pós-moderna da existência. Desejo agora é grife, é ideologia, é fundamento para escolhermos a religião, a ética, o amor. Até nossa maneira de pensar é controlada pelos desejos. Somos capazes de chegar a conclusões absurdas para justificar nossa vontade.
A maldição reside num fato curioso: quanto mais buscamos a satisfação, mais insatisfeitos nos tornamos. É como aqueles jogos de azar que nos fazem gastar mais dinheiro sempre que ganhamos um pouco. Ou como um viciado em drogas, que quanto mais consome, mais sente falta. Não há saída para quem segue este caminho. Um dia a insatisfação o dominará de tal forma que ele perderá o sentido de viver. Quando isso acontecer, a maldição da carência chegará ao mais alto nível de destruição.
Se há uma fartura, esta só é concedida a quem tem a fome certa: fome e sede de justiça (Mt 5.6). Isto é, o desejo de tornar-se justo e de fazer parte de uma justiça que vai além dos nossos desejos egoístas. É abrindo-se para a justiça de Deus que nos encontramos em seu reino. Ao contrário da máquina pós-moderna, a engrenagem do reino de Deus nos humaniza, nos faz mais gente. Escolhemos o que é justo, e não obrigatoriamente o que desejamos. No reino andamos livremente, pois o desejo que nos dominava é apenas mais um companheiro de viagem, com o qual até dialogamos, mas sem sermos subjugados por ele.
Contra a maldição da carência só mesmo o consolo e a satisfação de um Deus que nos conhece muito bem. A ele entregamos nossos desejos. Em troca, ele nos dá sua justiça.
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